A importância da recontagem de votos
por Michael Stanton
A notícia da última semana foi, sem dúvida, o
resultado ainda indefinido da eleição presidencial dos EUA, e a
recontagem de votos no estado de Florida. Parece que ainda vai
demorar para ser conhecido o resultado final desta eleição, e
isto já foi motivo para diversos editorialistas e jornalistas da
nossa imprensa proporem aos vizinhos do norte a adoção da
tecnologia de "urnas eletrônicas" usada na eleição municipal no
País no mês de outubro, e ainda única no mundo para uma eleição
desta escala. Sucumbiram a esta tentação, entre outros, Teresa
Cruvinel de O Globo, e Clovis Rossi, Eliane Cantanhede e Luis
Nassif da Folha de São Paulo. Segundo estes, tal adoção teria
definido o resultado em questão de horas, poupando o mundo do
espetáculo do adiamento por prazo ainda indefinido dos ritos de
celebração da vitória de Gore ou Bush. Dos principais
comentaristas políticos que abordaram a questão, apenas Jânio de
Freitas (Folha de São Paulo, dia 12) discordou desta receita
fácil.
A tecnologia de
urnas eletrônicas foi introduzida em eleições nacionais pela
Tribunal Superior Eleitoral, a partir da eleição municipal de
1996, quando foi usada apenas em cidades maiores. Seu uso foi
expandido em 1998 e 2000, alcançando neste ano a totalidade dos
municípios. Sua característica mais marcante é a totalização de
votos de uma seção eleitoral realizada pela própria urna
eletrônica, que, no final da sessão de votação, emite um
relatório (digital e impresso) informando o número de votos
dados a cada candidato. Pela sua lógica, a recontagem destes
votos não seria necessária, vez que o resultado sairia igual.
Portanto, a aplicação da urna eletrônica nacional no estado de
Florida sem dúvida simplificaria o processo. Quais então
poderiam ser os motivos para não ser usada tal tecnologia em
outros países? Será que alguém imagina que apenas os brasileiros
são capazes de inventá-la, ou pode ser que tenha sido esquecida
alguma coisa essencial nesta solução?
Na verdade, a questão do uso de meios eletrônicos
(computadores) na realização de eleições vem sendo estudado em
outros países há bastante tempo, sem resultar em sua adoção. Nos
EUA, após um processo de avaliação que se estendeu durante 8
anos, a cidade de Nova Iorque resolveu abandonar o projeto de
substituir as velhas máquinas de votar mecânicas por novas
eletrônicas, pela impossibilidade de atender adequadamente aos
requisitos impostos, especialmente na área de segurança (www.seas.upenn.edu:8080/~mercuri/Papers/voteauto.html).
Uma lista de requisitos de segurança para votação eletrônica foi
publicada em 1993 por Peter G. Neuman, cientista da SRI (www.csl.sri.com/neumann/ncs93.html). Suas
conclusões são preocupantes, pois apontam na direção da extrema
dificuldade da construção de um sistema puramente eletrônico,
que ao mesmo tempo seja confiável e livre de adulteração, sem
comprometer o sigilo do voto do eleitor. No fundo, o problema
reside na confiabilidade do software instalado nas urnas
eletrônicas, que tem que ser livre de erros de implementação, e
também livre de subversão por especialistas mal-intencionados
que tenham acesso a ele. A princípio, achava-se que o software
poderia ser validado apenas por inspeção do seu projeto (seu
"código fonte") por auditores externos, mas, num célebre artigo
publicado em 1984, Ken Thompson, famoso como um dos criadores do
sistema operacional Unix, explica como pode ser introduzido um "cavalo
de Tróia" num software, subvertendo sua segurança, sem sequer
precisar modificar seu código fonte (www.acm.org/classics/sep95).
No País também
existem estudiosos e críticos do processo de votação eletrônica.
O sítio
www.votoseguro.org, coordenado por Amílcar Brunazo Filho,
tem um conteúdo rico em informações e opiniões sobre a automação
das eleições nacionais, e sobre os problemas que ainda precisam
ser resolvidos. O sítio contém um ponteiro ao Fórum do Voto
Eletrônica, um grupo de discussão sobre este assunto. Um ensaio
interessante sobre a introdução de votação eletrônica no País,
de autoria de Osvaldo Maneschy, um dos membros deste fórum, pode
ser encontrado em
www.jus.com.br/doutrina/urnael14.html.
As críticas
ventiladas neste fórum são uma aplicação dos critérios
supracitados do Neuman, acompanhados de propostas práticas para
seu saneamento, e são muito bem expostas em artigo do próprio
Brunazo, disponível em
www.senado.gov.br/web/senador/requiao/aseguran.htm. Neste
artigo, vai-se ao cerne do problema de confiança no processo
eleitoral. É necessário não apenas ter um sistema seguro, como
também poder demonstrar sua segurança. Como Neuman já mostrou
que votação puramente eletrônica é intrinsecamente insegura, é
necessário complementá-la por procedimentos adicionais para
reforçar a confiança.
Brunazo
identifica quatro fases no processo de votação: a identificação
do eleitor, a votação secreta, a apuração de cada urna, e a
totalização dos votos. Na votação tradicional, cada fase é
realizada separadamente, e sujeito a controles externos: o
eleitor é identificado adequadamente; depois ele verifica que a
cédula entregue está em branco, e não pode identificá-lo,
mantendo-se assim o anonimato do voto; a apuração da urna é
realizada perante os fiscais dos candidatos; e os boletins das
urnas são publicados, permitindo a totalização independente dos
votos. No atual modelo de urna eletrônica, foram juntadas numa
só fase as três primeiras fases do processo manual substituído.
Agora o número do título do eleitor é usado como senha para
habilitar o uso da urna, ameaçando, potencialmente, o sigilo do
voto do eleitor. Em seguida, o eleitor escolhe seus candidatos e
confirma esta escolha; e finalmente seu voto é somado aos demais
da mesma urna, sendo gerados apenas totais de votos no final da
sessão.
O problema
fundamental é a correção do software da urna, pois não há
nenhuma redundância no sistema que permita validar esta correção
experimentalmente. Por exemplo, se tivesse sido introduzido um "cavalo
de Tróia" no software da urna para desviar sistematicamente
votos de um candidato para outro, não restaria provas que esta
falcatrua houvesse ocorrido. A urna poderia dar ao eleitor a
confirmação da sua opção, e então dar o voto para outro
candidato. A causa deste desvio poderia também ser decorrência
de um erro do software. Simplesmente não saberíamos. E o pior
disto tudo é que o TSE está nos dizendo, "O sistema é seguro.
Confiem em nossa palavra." Esta posição é tecnicamente
indefensável, pois depende de uma série de fatores imponderáveis,
inclusive a boa fé de pessoas que não sejam juizes nem
funcionários desse tribunal. E, infelizmente, há razões de sobra
de eleições passadas para ter desconfiança de processos
eleitorais. É essencial termos um sistema transparente, onde os
processos podem ser sujeitados a uma auditoria satisfatória a
eleitores e candidatos.
A proposta do
Brunazo para restaurar a confiança nas urnas eletrônicas envolve
duas modificações do seu projeto. Primeiro, a identificação do
eleitor deveria ser feita da maneira tradicional, de conferência
dos documentos contra a listagem dos eleitores, como sempre era
feita. A urna deveria ser habilitada para uso sem identificar o
votante, e, ao final da escolha do seu voto, a urna deveria
imprimir uma cédula com os detalhes deste voto. Após o eleitor
ter confirmado que a cédula corresponde à sua escolha, ela seria
depositada numa urna tradicional. Em caso de conflito entre o
voto impresso e o eletrônico, ambos poderiam ser cancelados e a
votação repetida. Note que agora teríamos dois registros
independentes da votação nesta seção eleitoral. Em caso de
dúvidas sobre o total dos votos eletrônicos, as cédulas
impressas poderiam ser recontadas manualmente, ou com o auxílio
de leitoras óticas apropriadas. Esta proposta foi incluída pelo
senador Roberto Requião no seu projeto de lei PLS 194/99,
atualmente em discussão no Senado. O projeto do senador Requião
prevê que sejam recontadas manualmente os votos de 3% das urnas,
escolhidos ao acaso, para validar os totais eletrônicos. As
demais urnas "manuais" teriam a função da caixa preta nos aviões,
apenas acionadas em evento de um desastre. Este procedimento
deveria reforçar a confiança que as novas urnas não estejam
sendo usadas para subverter a democracia.
Para voltar aos
problemas de Florida, e especialmente de Palm Beach County, onde
foram usadas máquinas de votar mecânicas, que não funcionaram
como pretendiam mais de 20.000 eleitores, não há nada que
desvirtue mais a inovação tecnológica como dar aos seus usuários
um sentimento de impotência e perda de controle sobre sua vida.
Isto aconteceu ali, e talvez ainda seja consertado após uma
auditoria do que realmente aconteceu. Se tivesse sido usado o
modelo atual de urna eletrônica brasileira, não haveria nem como
reclamar do resultado. Recontagem de votos não é atraso de vida,
é uma parte fundamental do processo democrático.
Michael Stanton (michael@ic.uff.br) é
professor titular de redes do Instituto de Computação da
Universidade Federal Fluminense.
http://www.estadao.com.br/tecnologia/coluna/stanton/2000/nov/13/194.htm
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